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segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Foto de Ana Rafaela D'Amico


DESTINO

Aquela pequenina espécie humana brincava no quintal já há algum tempo, sob a sombra de um belo cajueiro que insistira em sobreviver naquela rua tão seca. Mas havia uma barreira entre eles. Um muro, de tijolos, cimento, tinta, cerca elétrica... Do lado de dentro, a criança construía um pequeno castelo de areia no quintal extremamente “limpo” de folhas, flores, frutos, sem imaginar que ali antes vivera uma família inteira de palmeiras. Do lado de fora do muro, a árvore brincava com o vento que de leve soprava seus galhos cheios de flores, no chão sua doce sujeira: flores, folhas, frutos.
Na cabeça do menino sobrevivia um sonho, um desejo secreto aos seus pais. No cajueiro sobrevivia a última espécie da rua. A criança ainda não fala perfeitamente, a árvore não foi dotada de tal qualidade. Mas ambos se comunicam, seja pela sombra de um ou pela alegria do outro.
A Tarde, quando o sol finalmente abandona seu turno, menino se recolhe e cajueiro se aquieta. O vento não tem mais o mesmo sabor.
E todos os dias era a mesma cena, como um casamento feliz sem saber.
Com o decorrer dos dias, dos meses, a sombra se deslocava, e o menino se mudava do castelo para um parque de diversões que construíra com gravetos de seu amigo. Nunca teve a intenção de brincar em outro canto da casa, também nunca teve amigo tão fiel.
Quando chovia, se a mãe não estava, brincava de cachoeira, cascata e barquinho. Mas o melhor da festa mesmo era sentir aqueles pingos grossos que eram filtrados por seu enorme companheiro. O cajueiro, nessas ocasiões, parecia mais feliz, poderia até se dizer que sorria, um sorriso discreto e verdadeiro.
Mas o tempo não parou para aqueles dois amigos, passava lento, sem ser sentido, mas implacável o suficiente para construir raízes, cicatrizes.
O menino, que já não era mais tão novo, que não mais via o crescimento diário de um fruto, tornou-se um homem, e como tal foi enviado para outra cidade. Era necessário estudar, formar-se. Seus pequenos sonhos transformaram-se em grandes desilusões. Suas mãos não sentiam mais a terra escorrer entre os dedos com a água das chuvas. E seus pés há muito tempo não sabiam o que era pular amarelinha à sombra de um cajueiro.
Entre um namorico e uma desilusão amorosa, resolveu voltar a sua casa, rever os amigos. Custou a identificar seu lar, pois este não mais havia. No lugar, uma enorme mansão, pintada com cores da moda, tom sobre tom. Na terra que tantas vezes brincara havia agora uma varanda triste, envidraçada. E no lugar do seu velho companheiro da infância morava uma calçada fria, desenhada por um arquiteto que se dizia importante.
Já ia virar-se, não era ali que vivera... quando seu pai o chamou, feliz, mostrado toda a reforma cara. Ele olhou o sorriso do pai, até forçou um sorriso, seus olhos embaçados não queriam mais ver.
Sua visita foi rápida, assim que pôde, retornou aos seus livros. E quando todos achavam que finalmente ele voltaria para sua cidade, (deveria ser um grande Doutor em alguma coisa!) embrenhou-se numa Floresta Nativa, bem distante de sua região, uma floresta que assim como ele, brigava contra o destino que lhe teimavam impor.
Ninguém entendeu... tão bonito rapaz formar-se para viver isolado no mato...
E ele, na primeira chuva, correu para perto de uma enorme árvore e sentiu os pingos grossos deslizarem por seu rosto...

Valdira da Silva Rosa

terça-feira, 9 de outubro de 2007

ESCURIDÃO




Cálida, esgota-se num instante
Tímida, adentra em meus sentidos
Estremeço e vislumbro a escuridão
Sinto o leve borbulhar de estrelas.

Mágica, entorpecente da pele
Bêbeda, confunde meus desejos
Rodopio sobre a turbulência do olhar
Inspiro sua doce embriaguez.

Estratégica, envolve meus olhos
Bélica, fecha todas as minhas saídas
Vislumbro a lua embaçada
Caio em seus braços, rendido.

Única, apaixona-se pelo vento
Prática, abandona-me repentinamente
Louco, giro em minhas vontades
Adormeço no abandono.

Valdira S. Rosa

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O primeiro Pequeno Príncipe

Sentiu as primeiras gotas de chuva sobre sua face ao olhar o céu já escuro. Não sentia mais as pernas, de tamanho cansaço. A blusa embaixo do jaleco estava suada e grudada ao corpo. Sujeira não a incomodava mais, já virara habitual. Deixou sua velha companheira encostada ao poste e sentou-se no meio-fio. Enxugou o rosto numa pequena toalha que trazia no bolso da calça. Odiava aquela cor, mas era necessária, os carros precisavam avistá-la, apesar de ninguém conseguir vê-la, o que era normal, ninguém os via.
Certa vez ficou impressionada com uma mulher que caminhava na calçada, não saiu de seu trabalho para ver o que acontecia. Pois a mulher desviou, desceu da calçada, andou pelo acostamento, reclamou das más condições da estrada, mas não a viu. Era uma dessas madames bem emplumadas, de salto altíssimo e saia justa. O homem que a acompanhava caminhava de cabeça baixa e assim permaneceu, mesmo durante o desvio da mulher.
No início isso a incomodava, agora não mais. Descobriu que até era bom. Quando saía à noite, se arrumava e ninguém a reconhecia como gari, e nem acreditariam que era. Quando colocava o uniforme e o boné, tornava-se invisível, portanto irreconhecível. Até mesmo o encarregado, quando se reunia ao grupo, falava sem olhar para ninguém, como se falasse ao além. Dava as ordens, fazia suas reclamações e saía, sem ao menos um cumprimento.
Alguns moradores os cumprimentavam, mas como quem cumprimenta uma árvore ou um cão. Gratos pela limpeza diária. Mas o interessante mesmo era que as crianças aprendiam a não vê-los também, quando pequenos olhavam nos olhos, sorriam, ofereciam pirulitos e eram puxados por pais apressados, avós apavorados ou babás nervosas, então aprendiam a não vê-los. Já maiores um pouco, olhavam sorrateiramente, ainda deixavam escapar um leve sorriso, mas isso durava pouco. Quando adolescentes se tornavam até perigosos, então ela preferia ficar bem distante mesmo. Era a presença constante do fruto de toda a indiferença social.
O que curtia mesmo em seu trabalho era descobrir lixos diferentes em ruas diferentes, casas diferentes. No centro da cidade, na época em que lá trabalhava, com a presença dos bares noturnos, encontrava muitos maços de cigarros, alguns até com alguns cigarros que seus amigos disputavam. Muitas latas e garrafas perdidas. O pior eram as guimbas de cigarros, tinham um mau cheiro imenso. Na região em que estava agora, uma área de classe alta, o lixo era menos volumoso, até porque antes de seu grupo passar, vinham os garimpeiros do lixo, que às vezes ajudavam e outras vezes atrapalhavam. Já os vira pegar de tudo nos restos dos outros, principalmente comida, roupas e brinquedos. Já encontrara cartas de amor espalhadas por eles, que riram da desgraça amorosa dos outros enquanto provavam um uísque vencido e charutos úmidos. Não se sentia melhor que eles, mas não desfrutava do mesmo prazer, não conseguia revirar os estilhaços da vida de outras pessoas, não que tivesse nojo, isso não ocorria mais, era para ela como uma invasão domiciliar.
Já ouvira alguns colegas de trabalho falando de ter encontrado bebês em sacos, caixas, panos, mas nunca encontrara nem presenciara tal encontro. Achava que isso ocorria com alguns escolhidos. Deveria ser presente de Deus. O máximo que encontrara foi uma ninhada de gatos, lindos, que distribuíra entre as crianças de sua vizinhança e foi chamada de maluca pelos outros. Mas foi uma festa só na sua rua, e em seu coração.
Esticou as pernas e sentiu que a chuva aumentara, viu seus companheiros ao longe, caminhando pesadamente com suas vassouras e pás. Levantou-se e foi devagar, não tinha a intenção de acompanhá-los. Sonho mesmo era continuar seus estudos... Retirou debaixo do braço um livro que encontrara perdido, era tão bonito, apesar de sujo. Alisou-o e apertou contra o peito, escondendo um pouco da chuva. Era um volume comemorativo de “O Pequeno Príncipe”, já havia lido um trecho, mas deixara para terminar a leitura em casa, era um prazer que merecia um lugar melhor e toda a sua atenção... Não sabia explicar porque, mas gostou do desenho daquele menino estranho e infinitamente surreal. Foi caminhando embriagada pela alegria... Não viu o carro, o carro não a viu. Seu corpo tornou-se parte de seu trabalho, com a diferença da doçura de seus sonhos. O vento soprava uma poeira fina sobre todas as coisas da rua.(Valdira da Silva Rosa)

sábado, 8 de setembro de 2007


"Libelo


De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar – e um barco [com o nome da amiga, e uma linha e um anzol pra pescar ?
E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão de suas mãos, uma pro caniço, outra pro queixo, que é para ele poder se perder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar tristeza, e um pouco de pensamento pra pensar até se perder no infinito...
De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra -- um pedaço [bem verde de terra -- e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e um modesto pomar; e um jardim – que um jardim é importante – carregado de [flor de cheirar ?
E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão de suas mãos para mexer a terra e arranhar uns acordes de violão quando a noite se faz de luar, e uma garrafa de uísque pra puxar mistério, que casa sem mistério não valor morar...
De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um [amigo bem seco, bem simples, desses que nem precisa falar -- basta olhar -- um desses que desmereça um pouco da amizade, de um amigo pra paz e pra [briga, um amigo de paz e de bar ?
E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão de suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e pra bater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida à vontade ao amigo?
De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma [mulher com dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular ? E enquanto pensando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de [um carinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o destino o carrega em sua onda sem rumo ?
Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher -- as únicas coisas livres que lhe restam para lutar pelo mar, pela terra, pelo amigo ..."
(Vinícius de Moraes)

sexta-feira, 7 de setembro de 2007


Luana, minha Lua. Tão crescida, tão linda. Quando bebê, chorava atenção, iluminava o dia... quando menina, doce criança, audaz, um leãozinho se descobrindo. Agora, uma jovem menina, ainda se descobrindo e encantando. A cada dia novas descobertas, sofrimentos e alegrias... é, filha, a vida é assim: sonhos, felicidades e desilusões, lua cheia e lua minguante.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007



Olhando assim, é uma bela madeira, só. Mas já foi uma árvore, e não uma árvore qualquer, uma árvore da floresta amazônica. Assim, desta forma, centenas de outras ex-árvores estão partindo, em seu lugar apenas o vazio, o nada, o poder, o gado, o dinheiro... São inúmeros "jericos" (como chamam aqueles caminhões velhos que só prestam para transportar madeira roubada) trabalhando a noite inteira, vendendo à noite o que durante o dia a madeireira transforma em "riqueza". São diversas famílias pobres que vivem na clandestinidade, que dependem desse comércio, que se sujeitam a vender nossa floresta para conseguir sustentar a família. Alguns afirmam que não têm mais nada a perder... Isto me faz lembrar de um texto... "os cavalinhos correndo e nós cavalões comendo", neste caso os cavalões lucrando, que ostentam seus carros do ano, suas mansões e suas eleições.
Enquanto isso, sonhamos em garantir um mundo melhor para nossos filhos, netos, ou seja, para a geração futura. Mas infelizmente, é um trabalho ainda muito pequeno diante do avanço da destruição. Gasta-se milhões em falácias, congressos, encontros, conferências... e mais é gastado para garantir o lucro fácil e permitir que tudo continue como está.
Parece uma visão pessimista, mas não é, ela é real, é do dia-a-dia, é a visão dos sonhos se desmanchando...

domingo, 26 de agosto de 2007



Este papagaio é um dos moradores de Tabajara, distrito de Machadinho d'Oeste-RO. Sua história é bem interessante... numa das inúmeras queimadas da região, ele era filhote e quase morreu queimado. Uma senhora do lugar o socorreu, cuidou de suas asas queimadas. Ele cresceu na casa desta senhora, solto no telhado de palha de sua casa, bonito e faceiro.
Nesta foto que eu mesma fiz ele posou junto ao sol inebriante do Norte.

Operação Campos Amazônicos




Recentemente participei de um trabalho muito enriquecedor, junto aos meus colegas da Unidade de Conservação PARNA Campos Amazônicos. Fizemos um circuito para reconhecimento de parte da área de entorno do Parque. Depois de 5 dias, várias pontes se quebrando, usar balsas para travessias, passar por pedágios em terras indígenas, chegamos a Humaitá no fim da tarde e fomos presenteados com este pôr-de-sol divino no Rio Madeira.

Mais tarde colocarei outras imagens.

Um dia de domingo

Quer coisa mais maravilhosa do que passar o domingo no ócio da família? Curtir o gritinho da criança que brinca, as risadas dos filhos adolescentes com os amigos, o canto das pequeninas aves na mangueira...
O calor é intenso, mas também há o amor compartilhado aqui. Há uma cumplicidade cálida entre todos. Não precisa dizer o que se sente, todos sentem.
Com certeza há saudades. De amigos, de avós, de tempos felizes que já se foram. Mas também há esperanças de muitos outros tempos felizes por vir.

Criei este blog para um leve bate papo com os amigos e também para compartilhar textos meus e de outros felizardos por escrever.

quinta-feira, 22 de março de 2007

MADRUGADA




Um mundo de pensamentos lhe invadia a alma, porém o mais forte deles era que a vida sempre fora muito boa e ela nunca soubera perceber isto. Resultado: só descobria sua felicidade depois que esta se fora e ficava apenas o gosto da saudade. Quando criança sentia isso em relação aos dias ou às horas, afinal a infância é feita de momentos, agora é mais trágico porque se trata de um tempo bem mais longo, como anos.
Deixou que o vento frio lhe batesse na face molhada de lágrimas e sentiu que não tinha mais vontade de chorar, o que era uma perda enorme, o que fazer quando as emoções não transbordam mais? Talvez seja o momento de mudar de atitude, comportamento que nem sempre é simples.
Agora a madrugada já estrangulava a noite, o céu cobria-se daquele violeta indefinido que só os boêmios descrevem bem. Sentou-se no banco da pracinha e esperou que os primeiros madrugadores surgissem, só então caminhou rumo à padaria local.
Quando entrou em casa, o cheiro do cigarro invadiu suas narinas, ardendo. O gato logo veio cumprimentá-la com aquele jeito de quem quer colo. Como queria um colo também... Depois de tomar seu café preto, fortíssimo, tentou ler o jornal, era impossível. Muitas informações inúteis, enquanto sua mente tinha tantas informações conturbadas. Nunca pensara que a vida faria isto com ela, tão só e ao mesmo tempo tão acompanhada de sentimentos melancólicos. E por mais que buscasse seus velhos amigos, continuava a sentir-se da mesma forma. Aliás, já se cansara de sair com o mesmo grupo de pessoas de sempre, acabava bebendo além da conta, sem querer, apenas por costume, ouvia as mesmas histórias, as mesmas piadas, observava os mesmos gestos, as iguais angústias. Há muito desistira de compreender determinadas pessoas, afinal o que elas apreciavam era exatamente sofrer os mesmos dilemas e reclamá-los aos amigos, jamais resolvê-los.
Agora, este sentimento de solidão era até agradável, uma doce amargura. Abriu a janela da sala e deixou que o vento quente marítimo lambesse seu rosto, uma delícia. Debruçou-se e ficou observando o número de banhistas aumentar gradativamente. Alguns vinham sós, outros em grupo, casais, cães com seus orgulhosos donos.
À noite, depois de passar o dia na doce nostalgia de não fazer nada, arrumou-se cuidadosamente e rumou ao seu encontro. Sentia que seria definitivo, único e último. Então escolheu seu mais singelo vestido, era azul.
Enquanto dirigia pela cidade, observava a vida noturna borbulhante e aparentemente feliz, havia de tudo, desde as pequenas crianças abandonadas até as prostitutas mais luxuosas. Sentia-se meio assim também, uma prostituta do destino, da vida. Buscava sobreviver com prazer, o que nem sempre era possível.
Avistou o grande bar iluminado, estacionou rapidamente na sua vaga de sempre. Os mesmos olhares de sempre a acompanharam até chegar ao pequeno camarim. Não estava muito disposta a maquiar-se, mas era preciso, necessitava esconder o que a face teimava em revelar. Cuidadosamente fez uma maquiagem disfarce eficiente. Trocou seu vestido por outro, vermelho, bem decotado e longo. Acendeu um cigarro, era necessário. Logo vieram chamá-la.
Sentiu que seria uma noite muito diferente. Ao entrar no pequeno palco vislumbrou vários rostos conhecidos, alguns que sempre afogavam suas mágoas todas as noites ali, ouvindo-a cantar suas tristezas e mazelas de amor. Começou com Chico em “gota d’água” e terminou com “Eu te amo”. Cantou ainda algumas de Zélia Duncam, Adriana Calcanhoto e Ana Carolina.
No primeiro intervalo sentou-se na mesa minúscula de sempre, vieram alguns noturnos pedir uma música e outra, anotou-as sem muita atenção. Pediu uma água sem gelo. Não sabia quanto tempo ficaria ali, mas a impressão que tinha era que seria uma eternidade, não tinha inspiração para voltar ao palco, não agora. Mas o dever a empurrava pra frente.
Sentiu que mãos grandes e conhecidas a tocavam no ombro. Não precisou falar nada para que ele percebesse sua aflição e desânimo. Aliás, nunca precisara dizer qualquer palavra para que ele soubesse o que se passava. Esperou que ele sentasse para beber sua água, era uma forma de ocupar o corpo.
- Como está?
- Como deveria? Feliz, imensamente feliz... – não conseguia deixar de ser dramática, era sua fraqueza.
- Sinto muito, mas é que...
- Não precisa dizer nada, como sabe bem disso. Preciso voltar ao palco.
- Só mais um instante. Eu não ficarei até o final.
- Tudo bem. Mas o que você quer?
- Nada, simplesmente ficar perto, sentir suas mãos.
Ficaram em silêncio, o que era pior.
- Eu sei que não posso pedir nada, mas gostaria muito de vê-la às vezes.
Sentiu um amargo descer a garganta, pensou que fosse chorar, mas não. Lembrou-se da noite anterior, de sua surpresa e da atrocidade do destino. Sabia que ninguém precisava dizer que aquele romance não duraria, desde o dia em que começou esperava seu fim, nem mistérios. Mas imaginar que isso ocorresse contra a vontade dos dois era uma dose excessiva de romantismo barato.
- Eu não quero vê-lo mais, então não venha mais aqui. Deixe o tempo correr, quem sabe um dia... Não seria justo conosco.
- Mas eu não quero!
- Você é jovem demais para compreender determinadas coisas.
-Não gosto quando fala assim. Sabe muito bem o quanto admiro você.
- Isso não diminui minha idade, nem tampouco aumenta a sua, o que é o melhor. Adoro este seu jeito infantil de encarar a vida.
Infantil demais para a realidade agora, pensou sorrindo. Na verdade, era o maior bem que possuía, poder olhar as coisas de cima de seu passado.
- Eu não queria ter um filho agora... mas não decido isso, não tenho este poder, infelizmente.
-Já teve este poder e deixou que escapasse entre os dedos. Sempre temos outra opção. Não se engane. E você não precisa também se culpar por nada. Tinha que ser assim.
O burburinho no bar indicou que precisava subir. Saiu mais decidida e menos triste. O segundo bloco foi mais animado, como o público gostava. Logo a pista de dança estava lotada e sentiu a música levá-la, não era mais a dona da música, mas o oposto. Ele continuava lá, sentado, com seu olhar perdido no nada, admirando-a. Sabia que estava apaixonado e isso a envaidecia, mas era assustador. Sabia o que os outros pensavam, mesmo em dias tão modernos, mas nunca pensou nisso. Sua separação era inevitável por questões que fugiam ao seu controle, não queria mexer em pensamentos que já consolidara.
Ele saiu no meio de uma bossa, A Felicidade. Viu seu corpo bonito cruzar todo o bar e sumir. Quando saiu, pela madrugada, caía uma chuva fina que não a incomodou. Sentiu-se mais leve. Foi caminhando até a praia e ficou até o sol tentar nascer, por trás das nuvens vacilantes. Com a luminosidade do dia voltou à vida real.
Ao entrar na padaria costumeira, pegou displicente o jornal e não sentiu mais nada ao ver a notícia esperada e tão íntima: “jovem grávida tenta suicídio na universidade”.

Valdira da Silva Rosa