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sexta-feira, 11 de julho de 2008

Foto de Luciano Malanski




Quebra-cabeças

Insistia em dormir, teimava em ficar ali, encolhida pelo frio. Mas as nuvens de pensamentos borbulhavam e insistiam em nublar o quarto escuro. Já era muito tarde, mas não adiantava discutir com as idéias que teimavam e empacavam no meio de sua cama. Virou-se, desconfortável, e abrindo os olhos devagar esperou que a escuridão se abrandasse para levantar.





Sentiu um leve tremor pelo corpo magro quando pôs os pés no chão frio. Cambaleante, para a sala. Até a gata Greta dormia, apenas se mexendo de leve quando se sentou no sofá ao seu lado. Era linda, mas como todos os gatos, orgulhosa demais. Há algum tempo vinha pensando em ter um cão, talvez não se sentisse tão só em noites de insônia...





Quando amanhecia percebeu que cochilara levemente, encolhida no sofá. E a gata mudara-se para a poltrona, pobre animal. Um bom café agora seria sua salvação para suportar mais um dia frio.





Já a caminho de seu destino, viu o que muitos não vêem mais, um sol tímido saindo de seu esconderijo e iluminando de leve o topo dos prédios. Pensou que se estivesse longe da cidade poderia fotografá-lo para tentar imortalizar seu brilho. Sua velha câmera repousava no banco do carona, como um amigo fiel que se dá carona de vez em quando nas amarguras da vida. Desde que decidira pelo tema de sua exposição, sentia-se encantadoramente triste, e este era seu dom, viver infinitamente as idéias a que se propõe defender. Cada dia um novo rumo, novas vidas personificadas em suas próprias vidas. Já visitara a antiga estação de trem, que agora se tornara abrigo de indigentes, estivera também no asilo municipal e naquele que a deixara mais convicta do que fazia, o presídio feminino.





A cada fotografia, uma mazela humana como se arte fosse, e a cada cena uma marca das tristezas alheias se cravava na alma, daí o café, a angústia, a insônia... e o recomeço. Percebia que a cada lugar deixava um pouco de si mesma, um pouco de alegria. Os sorrisos tímidos e envergonhados quando explicava sua intenção. E finalmente o branco no preto do que podia revelar.





Em uma de suas visitas à favela, algumas crianças curiosas a acompanharam todo o tempo, mas uma delas chamou sua atenção pelo olhar desconfiado. E justamente esta não se deixou fotografar. Foi então que decidiu retratar seus pés e mãos, pequenos ainda, mas cansados e tristonhos. A criança achou graça, não que tivesse sorrido, mas era aquele olhar risonho que teria dado um mundo para fotografar.





Hoje seu destino era meio incerto, foi circulando até a periferia, onde já estivera e sem sucesso tentara fazer algumas fotos dos inúmeros pássaros nas gaiolas penduradas nas janelas. Sentia-se aliviada por não ser uma daquelas suas idéias que persistem e não a deixam em paz por dias, dessa vez foi apenas uma vontade sem grandes convicções.





Acabou parando no depósito de lixo municipal. Ficou surpresa com a quantidade de motos, bicicletas, carroças e até alguns carros antigos, estacionados enquanto seus donos faziam a triagem diária. Ao descer do carro com sua câmera percebeu logo uma família que estava alojada num canto, com suas camas de papelão e cobertores ainda com crianças dormindo. Como era muito cedo, havia poucos urubus, no entanto a presença deles era incômoda, assim como a presença de alguns homens, que logo se percebia, lideravam e organizavam os trabalhos.





Não era sua intenção incomodá-los ou interromper suas atividades, mas isto sempre acabava acontecendo, procurava interferir o mínimo possível, isto garantia a espontaneidade das imagens.
Ao final da manhã já havia feito diversas fotos e já conhecia a história de alguns catadores de lixo. A que mais a comoveu foi a de um menino de apenas 15 anos que ali estava para conseguir sustentar sua esposa da mesma idade e o filho de apenas 3 meses. Segundo ele, a criança nascera prematuramente, o que deixara algumas seqüelas respiratórias. Ele era lindo, tinha uma dessas belezas comuns que poucos conseguem enxergar, era altivo e tinha um olhar que não combinava com o rosto ainda infantil. Era com certeza uma bela composição.
A família que se alojara no local não lhe trouxe grandes surpresas, a não ser pelo luxo da TV ligada a uma bateria, que ocupava a melhor posição no acampamento.





Quando já saía do local, um menino bem pequeno para sua idade a interceptou, mostrando uma máquina fotográfica velha que exibia orgulhosamente em seu peito. Sorriu para ela e perguntou: “Posso fazer uma sua também?” Aquilo realmente era uma obra prima. Depois de sorrir para que ele a fotografasse em sua câmera quebrada, ela o imortalizou em uma imagem na qual ele ajeitava o flash...






Durante dias perambulou pela cidade que não dorme, pelos hospitais insones, pelas ruas barulhentas da madrugada e pelo silêncio da solidão de quem vive nelas. Conheceu seres humanos que não mais sabiam o que significava a luz do sorriso e também encontrou outros que inexplicavelmente sorriam para a vida. Descobriu que a beleza do feio a incomodava de tal forma que tentava torná-lo lindo em suas lentes. Uma vida intensa formigava em suas mãos e olhos, vida esquecida por muitos e vivenciada todo o tempo por todos.





Na esperança de encontrar explicações, seus dedos ágeis registravam tudo, o que a deixava cheia de imagens como num imenso quebra-cabeças. Sabia que a maior dificuldade seria montar as pequenas peças para que alguns iluminados conseguissem captar o mundo inquietante que acabara de vivenciar. Sofria a cada montagem, a cada parede repleta... e percebia que tudo era tão diminuto diante do que vira. Por diversas vezes rasgou painéis inteiros, numa raiva incontida de decepção.





Mas um dia tudo se encaixou, seus sentimentos já estavam adormecidos e sua razão retornava aos poucos. Definitivamente não era o que vivenciara, mas era uma metáfora daquilo.

No último dia da exposição, no espaço cultural municipal, recebeu uma visita encantadora. O menino da máquina quebrada entrou bem devagar, de cabeça baixa, percebia-se o medo de ser expulso dali. Mas ele foi em sua direção tão certo que até achou que seus pés não tocavam o chão. Já a sua frente, levantou os olhos sorridentes que só as crianças têm e estendeu a mão com um papel, parecia um envelope. Da mesma forma como entrou, saiu, sem que muitos o percebessem. Ainda ficou um tempo olhando a ausência dele, distraidamente. Então finalmente viu o envelope, estava sujo e amassado. Abriu delicadamente, como se fosse uma jóia.





E lá estava ela, com sua câmera preta sobre a camiseta branca, registradas numa foto, no meio do depósito de lixo, apenas os restos da civilização ao fundo.


Valdira S. Rosa
10/07/2008