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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Dança dos dias



Desfaço-me nas horas desse tempo seco

Me restabeleço nos dias, meses, anos

gradualmente, sem pressa


Arrumo as gavetas, são papéis, notas, cartas

Ah, as cartas…

Não sei porque parei de escrevê-las

Elas têm um quê de testamento (talvez por isso)


Arrumo armários, pastas, fotos

e me pego revivendo aquele passado retratado

estranho, ausente, nostálgico


A medida que arrumo, organizo,

me desalinho, entorto


Tudo organizado, olho ao redor

A bagunça interna é assustadora, voraz


Tento me equilibrar,

os olhos pesam, lacrimejam


Decido acender um incenso,

colocar uma música, dançar


Aos poucos a balburdia vai se camuflando entre uma sensação e outra

A dança se torna frenética,

o som é vibrante e sensual

A pele está úmida


Paro levemente, os pés descalços no chão frio

desço, sento, deito, rio


Recomeço então

arrumo os novos papéis, as imagens vívidas,

um talismã, um livro amado


Aos poucos também vão surgindo espaços

cantos de luz pálida, recantos floridos,

cheiros suntuosos vão brotando


Faço um chá,

de amoras.

Valdira Rosa

sábado, 17 de agosto de 2019

Manhã


Talvez fosse o sol
não estava tão certa
mas o dia se mostrava perfumado
as cores saltavam a cada canto
e o vento era apenas um detalhe, confuso e sensual
sentia na pele o toque de cada cor.
Movia-se vagarosamente,
tocou a ponta dos dedos na delicadeza da flor,
olhou de canto uma folha leve conduzida pelo ar,
roçou as pernas nos galhos ainda molhados de orvalho,
resolveu sentar.
O cheiro se intensificou,
A luz banhou seu corpo, esticou-se
as mãos tocaram a terra, de leve, era um sussurro.
Esticou-se um pouco mais, deitou.
Espreguiçou-se longamente, como os gatos fazem,
O capim tocou-lhe os cabelos, confundindo-se
Os lábios estavam úmidos, num semi-sorriso, discreto
Os olhos piscavam lentamente, num baile de lágrimas
E então percebeu que era um único ser, um só corpo, Gaia.

Valdira Rosa

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Eu vejo flores em você


Ela queria o mar,
o mais intenso e misterioso oceano.
Queria as estrelas,
as mais distantes e inalcançáveis.
Queria o vento,
aquele que desmancha castelos, cabelos,
que embala as ondas, embarga sentimentos.
Queria ainda a lua,
em todas as suas fases, humores e belezas
desde a mais escondida até a mais exuberante e cheia de si.
Queria as flores,
inúmeras, singelas, perfumadas, azuis, rubras,
todas soltas ao vento para colorir o mundo.

Valdira S. Rosa

Luto




O inverno chegou, e com ele o frio sentimento.
No início era pequeno, sombrio e até tímido, mas logo se tornou largo, embaçado e sufocado.
Dominou os dias, a escuridão da noite e o céu, e tudo se tornou sensualmente triste, lúgubre.
Não via o sol, não via a lua e nem sentia o vento dos dias.
Mas não era feio, era o luto, era necessário, era a cura.
Sentiu a carne se rasgar, a pele arder, os olhos incharem, a alma encolher.
O vazio chegou, fúnebre, e deixou os espaços soltos, terra úmida, a espera de luz, de flores, de chuva, de alma lavada.

Valdira S. Rosa

domingo, 28 de julho de 2019

CURA

Numa nuvem dispersa e fria ela desceu ao poço da alma.
Visitava os danos sofridos, os arranhões e até os rasgos mais profundos. Estavam lá, disformes, taciturnos, todos com sinais de sangramento e cicatrizações esparsas. Alguns ainda sangravam, outros já se mostravam secos, com cicatrizes robustas.
Apesar do sofrimento evidente, dos danos espalhados, havia beleza e superioridade, havia um ar doce e selvagem.
E assim, no meio dos danos, encontrou tesouros. A princípio, tímidos e ainda ofuscados pela dor, mas a um olhar mais atento se via o brilho e a leveza de sua constância.
Não fez alardes, nem para as dores e menos ainda para os tesouros descobertos, deixou-os em sua timidez e quietude, para que permanecessem exatamente em seus pontos de solidão e aconchego.
Sorriu, sentiu que as lágrimas não eram mais de dor, e sim de uma completa ciência do que se passava ali em seu mundo secreto.