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domingo, 30 de setembro de 2012

A Outra


Sempre a observava com paixão. Sabia de sua vida mais íntima, conhecia seus hábitos. Decorara os dias que recebia flores, toda semana, rosas exuberantes e delicadas flores do campo. Sabia que não eram enviadas sempre pela mesma pessoa, estilos diferentes, floriculturas diferentes e especialmente, recepção diferente. As rosas iam para um vaso de porcelana na sala, e ali reinavam por dias. As singelas flores eram colocadas num vaso antigo e ficavam em seu quarto por um dia apenas, mas estas eram o tempo todo enamoradas.
Conhecia sua bebida predileta, vodca, e sempre a bebia sozinha, exceto às quartas-feiras, que além de acompanhada, a roupa era deslumbrante, sensual, a noite era previsível, pela manhã acordava tarde, lânguida, e ia caminhar.
Cerveja era apreciada aos sábados, com amigos, casa cheia, música boa e alta, dançavam, comiam. E aos domingos era convidada para uma nova peça de teatro que estava passando na cidade, ou um filme recém-lançado, às vezes um show de rock, e a preparação era digna de um espetáculo, desde a maquiagem à escolha do lingerie.
Sabia quando a outra era convidada para um motel. Vestia-se com primor, porém mais ousada, deixava de usar calcinhas, ou usava alguma especifica para o momento. Perfumava-se mais, caprichava nos hidratantes, por horas.
Quando percebia tais rituais, alegrava-se pela outra e algo dentro de si mesma ia murchando cada dia mais. Olhava-se, com seu vestido leve e simples, sentia a pele arrepiar-se, passava as mãos pelos seios ainda bonitos. Mas não ganhava flores, não as recebia e nem as comprava.
Às vezes comprava ingressos para um espetáculo que adoraria ir, mas os esquecia em alguma gaveta e depois os esquecia da vida e esquecia-se de si, vivia a outra.
Deslumbrava-se com os momentos de observação, ali vivia intensamente, presa à sua janela e à janela da outra, transparente, nua.
Gostava das noites tórridas que desfrutava em contemplação, gelada, fria, encolhida no canto da sala. E mais do que sentia o sabor das bebidas, ficava tonta, leve, com seus efeitos.
Era também marcante o dia da feira, ia comprar verduras e frutas frescas, enquanto acompanhava a outra, comprando, com frescor, frutas exóticas e encantando o ambiente.
Chegou a ir a um motel distante da cidade, um dos mais luxuosos, sozinha, aproveitou o banho na banheira, secou seus cabelos, deitou-se na imensa cama. Mas a melhor sensação foi encostar-se à parede e sentir a presença da outra, do outro lado, em prazer descomedido. Saiu feliz.
Outra vez comprou bebidas, arrumou-as em seu bar, vislumbrou a beleza de garrafas tão distintas ao seu alcance... Nunca bebeu, nunca amou, nunca enlouqueceu.
Então, numa manhã, viu o corpo da outra, estendido, frio, branco, imóvel. Foram-se os prazeres, os amigos, os amantes. Fora-se a vida. Fora-se o amor. Sentiu-se ir também, olhou as mãos, estavam manchadas de sangue, secas, duras.
Tombou para um lado e dormiu. As sirenes continuavam a iluminar tudo, e o som era cada vez mais distante.

27 de Setembro de 2012
Valdira S. Rosa