E assim eu nasci, pronta e perfeita, já cheia de mulher. Não entendi bem o que se passava, mas vi que outro ser, ainda adormecido, mexia com meus instintos. Ele também parecia perfeito, se não fosse o corte no abdome e o semblante dominador. Logo senti uma doce sensação de alegria e paz, como estava previsto. O amor veio logo em seguida, a tudo, mas sobretudo àquele homem que assim adormecido demonstrava fragilidade.
Ao acordar, olhou-me um pouco assustado, mas logo compreendeu o que ocorrera e parecia gostar, apesar de notar um certo ar de decepção no fundo de seus olhos, que mais tarde eu compreenderia, se bem que imaginação de mulher é como um minhocário, mesmo não conhecendo um à época.
A vida transcorria tranquila e entediante naquele tão apaixonante paraíso. Aquele ser que se tornara meu parceiro era, ao mesmo tempo, autoritário (comigo) e submisso (a ELE) e havia um grave problema: eu o amava, talvez não por opção, mas por destino e a cada dia eu me sentia mais perdida naquele mundo tão masculino. Até que eu a conheci, bela e inteligente, tão diferente de tudo que vira até então. Diferente de mim, tinha a pele muito branca e pequenas sardas no rosto e ombros, seios pequenos, longilínea, para os homens poderia parecer “sem atrativos curvilíneos”, mas possuía um semblante dominador e provocante ao mesmo tempo, olhos verdes e cabelos vermelhos, que refletiam a luz do sol. Pela primeira vez de minha existência senti-me feia, como me sentiria muitas vezes depois, mas não fazia ideia naquele momento.
Não sabia de onde ela viera, mas apareceu enquanto eu estava a colher água fresca para meu homem, não sei se foi esta primeira vez apenas uma aparição, mas ela saía da água, e mostrou-se simpática, apesar de seu constante sorriso debochado. Anunciou-se: Lilith.
Eu nunca ouvira falar de outros seres idênticos a mim, muito menos daquele nome, mas senti que havia algo estranho e com um toque de proibição no ar.
Quando ia me apresentar, ela me informou que não havia necessidade, sabia exatamente quem eu era e o meu papel naquele paraíso: obedecer cegamente a Ele e ao meu homem. E que não poderia ousar desafiar a qualquer um dos dois, senão seria como ela, banida do Paraíso.
Achei estranho então o fato de ela estar ali, ao que me esclareceu que agora não tinha motivos para obedecer a ninguém e como fora banida, a acolhida viera prontamente daqueles que tiveram o mesmo destino e com um pouco de sorte e astúcia conseguira poderes que os homens nem sonhavam conhecer tão cedo.
Conversamos durante um longo tempo, na verdade ela falou praticamente o tempo todo, calmamente, sempre com um sorriso dissimulado que eu ainda não conhecia e nem saberia usar. Explicou-me suas desavenças com Ele e o enorme poder que exercia sobre o homem, e também como era genioso e vingativo. Segundo Lilith, qualquer sinal de rebeldia ou afronta era encarado como guerra e isso muito se repetiria por todas as gerações e os homens muito pagariam ainda por seus atos em desacordo com as normas divinas, a começar por meus filhos. No momento não compreendi a dimensão do que ela dizia, até porque ainda não era mãe e não sabia o horror que poderia ser o amor materno, imenso e eterno.
Durante vários dias nos encontramos, sempre sem que Adão soubesse, segundo Lilith, ele teria um acesso de ciúmes e isso não seria boa experiência pra mim, o ciúme de um homem é o pior dos sentimentos que foi inserido propositadamente e que toda a humanidade provaria. Nada fazíamos a não ser conversar, talvez tenha sido o primeiro evento de reuniões filosóficas da história do paraíso. Mas não percebia que aos poucos eu me embriagava com suas palavras, inebriantes e astutas, que foram se enraizando em meu ser, e permaneceriam ali até renascerem em todas as minhas gerações, às vezes com maior expressividade, às vezes mais tímidas. Era um misto de rebeldia, sensualidade, sabedoria, uma verdadeira revolução de pensamentos e sentimentos, que incubados poderiam ser extremamente perigosos.
Gradativamente eu me tornava uma mulher diferente, e isso agradava ao meu homem sob alguns aspectos e muitas vezes causava desavenças domésticas. E foi assim que se criou um espaço vazio entre nós dois, pois diferente de minha relação com Lilith, não conversávamos, até por falta de perspicácia dele, e criou-se um mistério ao meu redor, que ele jamais seria capaz de transpor. E a partir daí comecei a mostrar que algumas normas eram absurdas, como aquela do fruto proibido. Ora, se não era para provarmos, que lá não estivesse! E se era para nos testar o tempo todo, como cobaias, que usasse algo mais criativo. E além de tudo, não havia nada mais tentador do que provar a Sua ira, segundo os próprios ensinamentos de Lilith. É claro que induzi Adão a provar também, ele por si só não teria essa audácia, mas daí a colocar a culpa apenas em mim foi muito cruel, afinal ele não era criança e devia maiores obediências do que eu. E por isso fui condenada, eu e todas as outras mulheres que ainda viriam a nascer, prova do rancor Dele. Adão ganhou um pomo, considerado futuramente até sensual.
Em consequência também fomos expulsos do Paraíso, grande acontecimento histórico, tivemos que aprender a trabalhar, a lutar contra a natureza para sobreviver, o que de todo não foi tão ruim, saímos do marasmo, do tédio, do risco de obesidade, principalmente Adão. Também é óbvio que não foi fácil, pelo contrário, tudo que poderia ser piorado era rigorosamente feito, segundo Sua vontade, afinal tínhamos que aprender a lição e estávamos condenados a ela, por toda a eternidade.
Não encontrei mais a Lilith, me sentia um pouco abandonada naquele infortúnio e sentia falta de nossas conversas, que agora muito me ajudariam a desabafar. Por outro lado, Adão tornou-se um amante melhor, e logo tivemos os dois filhos previstos na história, para cumprimento dos desígnios divinos.
Foi então que descobri como era sofrido o sentimento materno, pela primeira vez senti-me impotente diante dos sentimentos e do destino. Sentir mais dor quando algo é feito aos meus filhos do que feito a mim mesma era incompreensível pra mim. E tive todo o sofrimento que depois viraria história de família, mas que na época não fazia ideia que era mais um castigo e voltado a todas nós, não somente a mim. Tive a depressão pós parto, que foi tratada pelo derramamento de muitas lágrimas solitárias, senti-me horrível com aqueles seios enormes e que além de tudo rachavam na amamentação. Adão afastou-se de mim, o que só reforçou o quanto os homens são fracos e não sabem gerenciar conflitos, mas no momento me fez sentir mais solitária, o que era uma contradição, pois se ali ele permanecesse, minha irritação seria maior diante de sua incompetência paterna. Precisaríamos amargar por longos séculos para que o homem descobrisse a beleza dos cuidados com os filhos.
Foi nessa época que voltei a encontrar Lilith, que da mesma forma de antes, apareceu repentinamente, mostrando-se mais amável que nos primeiros encontros, me compreendia, me escutava e até discordava de alguns posicionamentos meus, mas eram discussões inteligentes, regadas a uma boa bebida que ela levava, e que até hoje não sei o que era. Nesse segundo evento descobri que essas reuniões femininas ainda muito causariam problemas futuros, mas que não estava no momento de pensarmos nisso, era um bom preço pago pela liberdade de expressão, e melhor ainda se cada geração de mulheres descobrisse por si só.
O que eu não sabia era que encontros também ocorriam a Adão, que Lilith tão sedutora confortava, aconchegava e dava toda a compreensão que ele não tinha no lar, encontros regados a sexo e a mesma bebida ofertada a mim. Ironicamente isso não me afetaria na época, se o risco fosse perdê-la também. Mas hoje vejo de maneira diferente. Percebo o quanto fomos ingênuos o tempo todo, e o pior, com prazer, o que torna a ingenuidade amortecida.
Foi a primeira verdadeira traição da história das mulheres. Mas estávamos sujeitas a isso, em nossa carne estava inserida a ira e o ciúme Dele.
Quando a crise passou, mergulhamos no cotidiano doméstico e ela voltou a desaparecer, tanto pra mim quanto para Adão. O dia-a-dia de sustentar dois outros seres, além de nós, nos consumia por inteiros, esquecíamos dos grandes prazeres e alegrávamos com os pequenos corriqueiros. O caminhar lento de uma criança, o tagarelar de outro, a arte de um e a bondade do outro. Apesar de já imaginarmos que algo pior poderia vir, não nos prendemos a isso, pois simplesmente seguíamos o destino, sem discussões do futuro.
Quando a tragédia abateu-se sobre nossa família, primeiro chegou sobre mim, que vivia a gerenciar as brigas internas. Ao contrário do que se sabe, Caim e Abel não eram tranquilos, sempre foram crianças saudáveis, e como tal aprontavam mais que o necessário, para desespero meu.
No entanto o pior de tudo, era saber que apenas cumpríamos ordens, que tinha de ser assim, me sentia manipulada, mesmo tendo saído do Paraíso continuava sob Seu domínio, o que me irritava profundamente. Os dois meninos foram penalizados, um com a morte o outro com o assassinato e apenas para provar o Seu poder, mostrando na verdade uma figura egoísta e ciumenta.
Perdi os dois: um para a morte, o outro para o anonimato.
(Valdira S. Rosa)