O primeiro Pequeno Príncipe
Sentiu as primeiras gotas de chuva sobre sua face ao olhar o céu já escuro. Não sentia mais as pernas, de tamanho cansaço. A blusa embaixo do jaleco estava suada e grudada ao corpo. Sujeira não a incomodava mais, já virara habitual. Deixou sua velha companheira encostada ao poste e sentou-se no meio-fio. Enxugou o rosto numa pequena toalha que trazia no bolso da calça. Odiava aquela cor, mas era necessária, os carros precisavam avistá-la, apesar de ninguém conseguir vê-la, o que era normal, ninguém os via.
Certa vez ficou impressionada com uma mulher que caminhava na calçada, não saiu de seu trabalho para ver o que acontecia. Pois a mulher desviou, desceu da calçada, andou pelo acostamento, reclamou das más condições da estrada, mas não a viu. Era uma dessas madames bem emplumadas, de salto altíssimo e saia justa. O homem que a acompanhava caminhava de cabeça baixa e assim permaneceu, mesmo durante o desvio da mulher.
No início isso a incomodava, agora não mais. Descobriu que até era bom. Quando saía à noite, se arrumava e ninguém a reconhecia como gari, e nem acreditariam que era. Quando colocava o uniforme e o boné, tornava-se invisível, portanto irreconhecível. Até mesmo o encarregado, quando se reunia ao grupo, falava sem olhar para ninguém, como se falasse ao além. Dava as ordens, fazia suas reclamações e saía, sem ao menos um cumprimento.
Alguns moradores os cumprimentavam, mas como quem cumprimenta uma árvore ou um cão. Gratos pela limpeza diária. Mas o interessante mesmo era que as crianças aprendiam a não vê-los também, quando pequenos olhavam nos olhos, sorriam, ofereciam pirulitos e eram puxados por pais apressados, avós apavorados ou babás nervosas, então aprendiam a não vê-los. Já maiores um pouco, olhavam sorrateiramente, ainda deixavam escapar um leve sorriso, mas isso durava pouco. Quando adolescentes se tornavam até perigosos, então ela preferia ficar bem distante mesmo. Era a presença constante do fruto de toda a indiferença social.
O que curtia mesmo em seu trabalho era descobrir lixos diferentes em ruas diferentes, casas diferentes. No centro da cidade, na época em que lá trabalhava, com a presença dos bares noturnos, encontrava muitos maços de cigarros, alguns até com alguns cigarros que seus amigos disputavam. Muitas latas e garrafas perdidas. O pior eram as guimbas de cigarros, tinham um mau cheiro imenso. Na região em que estava agora, uma área de classe alta, o lixo era menos volumoso, até porque antes de seu grupo passar, vinham os garimpeiros do lixo, que às vezes ajudavam e outras vezes atrapalhavam. Já os vira pegar de tudo nos restos dos outros, principalmente comida, roupas e brinquedos. Já encontrara cartas de amor espalhadas por eles, que riram da desgraça amorosa dos outros enquanto provavam um uísque vencido e charutos úmidos. Não se sentia melhor que eles, mas não desfrutava do mesmo prazer, não conseguia revirar os estilhaços da vida de outras pessoas, não que tivesse nojo, isso não ocorria mais, era para ela como uma invasão domiciliar.
Já ouvira alguns colegas de trabalho falando de ter encontrado bebês em sacos, caixas, panos, mas nunca encontrara nem presenciara tal encontro. Achava que isso ocorria com alguns escolhidos. Deveria ser presente de Deus. O máximo que encontrara foi uma ninhada de gatos, lindos, que distribuíra entre as crianças de sua vizinhança e foi chamada de maluca pelos outros. Mas foi uma festa só na sua rua, e em seu coração.
Esticou as pernas e sentiu que a chuva aumentara, viu seus companheiros ao longe, caminhando pesadamente com suas vassouras e pás. Levantou-se e foi devagar, não tinha a intenção de acompanhá-los. Sonho mesmo era continuar seus estudos... Retirou debaixo do braço um livro que encontrara perdido, era tão bonito, apesar de sujo. Alisou-o e apertou contra o peito, escondendo um pouco da chuva. Era um volume comemorativo de “O Pequeno Príncipe”, já havia lido um trecho, mas deixara para terminar a leitura em casa, era um prazer que merecia um lugar melhor e toda a sua atenção... Não sabia explicar porque, mas gostou do desenho daquele menino estranho e infinitamente surreal. Foi caminhando embriagada pela alegria... Não viu o carro, o carro não a viu. Seu corpo tornou-se parte de seu trabalho, com a diferença da doçura de seus sonhos. O vento soprava uma poeira fina sobre todas as coisas da rua.(Valdira da Silva Rosa)
Sentiu as primeiras gotas de chuva sobre sua face ao olhar o céu já escuro. Não sentia mais as pernas, de tamanho cansaço. A blusa embaixo do jaleco estava suada e grudada ao corpo. Sujeira não a incomodava mais, já virara habitual. Deixou sua velha companheira encostada ao poste e sentou-se no meio-fio. Enxugou o rosto numa pequena toalha que trazia no bolso da calça. Odiava aquela cor, mas era necessária, os carros precisavam avistá-la, apesar de ninguém conseguir vê-la, o que era normal, ninguém os via.
Certa vez ficou impressionada com uma mulher que caminhava na calçada, não saiu de seu trabalho para ver o que acontecia. Pois a mulher desviou, desceu da calçada, andou pelo acostamento, reclamou das más condições da estrada, mas não a viu. Era uma dessas madames bem emplumadas, de salto altíssimo e saia justa. O homem que a acompanhava caminhava de cabeça baixa e assim permaneceu, mesmo durante o desvio da mulher.
No início isso a incomodava, agora não mais. Descobriu que até era bom. Quando saía à noite, se arrumava e ninguém a reconhecia como gari, e nem acreditariam que era. Quando colocava o uniforme e o boné, tornava-se invisível, portanto irreconhecível. Até mesmo o encarregado, quando se reunia ao grupo, falava sem olhar para ninguém, como se falasse ao além. Dava as ordens, fazia suas reclamações e saía, sem ao menos um cumprimento.
Alguns moradores os cumprimentavam, mas como quem cumprimenta uma árvore ou um cão. Gratos pela limpeza diária. Mas o interessante mesmo era que as crianças aprendiam a não vê-los também, quando pequenos olhavam nos olhos, sorriam, ofereciam pirulitos e eram puxados por pais apressados, avós apavorados ou babás nervosas, então aprendiam a não vê-los. Já maiores um pouco, olhavam sorrateiramente, ainda deixavam escapar um leve sorriso, mas isso durava pouco. Quando adolescentes se tornavam até perigosos, então ela preferia ficar bem distante mesmo. Era a presença constante do fruto de toda a indiferença social.
O que curtia mesmo em seu trabalho era descobrir lixos diferentes em ruas diferentes, casas diferentes. No centro da cidade, na época em que lá trabalhava, com a presença dos bares noturnos, encontrava muitos maços de cigarros, alguns até com alguns cigarros que seus amigos disputavam. Muitas latas e garrafas perdidas. O pior eram as guimbas de cigarros, tinham um mau cheiro imenso. Na região em que estava agora, uma área de classe alta, o lixo era menos volumoso, até porque antes de seu grupo passar, vinham os garimpeiros do lixo, que às vezes ajudavam e outras vezes atrapalhavam. Já os vira pegar de tudo nos restos dos outros, principalmente comida, roupas e brinquedos. Já encontrara cartas de amor espalhadas por eles, que riram da desgraça amorosa dos outros enquanto provavam um uísque vencido e charutos úmidos. Não se sentia melhor que eles, mas não desfrutava do mesmo prazer, não conseguia revirar os estilhaços da vida de outras pessoas, não que tivesse nojo, isso não ocorria mais, era para ela como uma invasão domiciliar.
Já ouvira alguns colegas de trabalho falando de ter encontrado bebês em sacos, caixas, panos, mas nunca encontrara nem presenciara tal encontro. Achava que isso ocorria com alguns escolhidos. Deveria ser presente de Deus. O máximo que encontrara foi uma ninhada de gatos, lindos, que distribuíra entre as crianças de sua vizinhança e foi chamada de maluca pelos outros. Mas foi uma festa só na sua rua, e em seu coração.
Esticou as pernas e sentiu que a chuva aumentara, viu seus companheiros ao longe, caminhando pesadamente com suas vassouras e pás. Levantou-se e foi devagar, não tinha a intenção de acompanhá-los. Sonho mesmo era continuar seus estudos... Retirou debaixo do braço um livro que encontrara perdido, era tão bonito, apesar de sujo. Alisou-o e apertou contra o peito, escondendo um pouco da chuva. Era um volume comemorativo de “O Pequeno Príncipe”, já havia lido um trecho, mas deixara para terminar a leitura em casa, era um prazer que merecia um lugar melhor e toda a sua atenção... Não sabia explicar porque, mas gostou do desenho daquele menino estranho e infinitamente surreal. Foi caminhando embriagada pela alegria... Não viu o carro, o carro não a viu. Seu corpo tornou-se parte de seu trabalho, com a diferença da doçura de seus sonhos. O vento soprava uma poeira fina sobre todas as coisas da rua.(Valdira da Silva Rosa)