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quinta-feira, 22 de março de 2007

MADRUGADA




Um mundo de pensamentos lhe invadia a alma, porém o mais forte deles era que a vida sempre fora muito boa e ela nunca soubera perceber isto. Resultado: só descobria sua felicidade depois que esta se fora e ficava apenas o gosto da saudade. Quando criança sentia isso em relação aos dias ou às horas, afinal a infância é feita de momentos, agora é mais trágico porque se trata de um tempo bem mais longo, como anos.
Deixou que o vento frio lhe batesse na face molhada de lágrimas e sentiu que não tinha mais vontade de chorar, o que era uma perda enorme, o que fazer quando as emoções não transbordam mais? Talvez seja o momento de mudar de atitude, comportamento que nem sempre é simples.
Agora a madrugada já estrangulava a noite, o céu cobria-se daquele violeta indefinido que só os boêmios descrevem bem. Sentou-se no banco da pracinha e esperou que os primeiros madrugadores surgissem, só então caminhou rumo à padaria local.
Quando entrou em casa, o cheiro do cigarro invadiu suas narinas, ardendo. O gato logo veio cumprimentá-la com aquele jeito de quem quer colo. Como queria um colo também... Depois de tomar seu café preto, fortíssimo, tentou ler o jornal, era impossível. Muitas informações inúteis, enquanto sua mente tinha tantas informações conturbadas. Nunca pensara que a vida faria isto com ela, tão só e ao mesmo tempo tão acompanhada de sentimentos melancólicos. E por mais que buscasse seus velhos amigos, continuava a sentir-se da mesma forma. Aliás, já se cansara de sair com o mesmo grupo de pessoas de sempre, acabava bebendo além da conta, sem querer, apenas por costume, ouvia as mesmas histórias, as mesmas piadas, observava os mesmos gestos, as iguais angústias. Há muito desistira de compreender determinadas pessoas, afinal o que elas apreciavam era exatamente sofrer os mesmos dilemas e reclamá-los aos amigos, jamais resolvê-los.
Agora, este sentimento de solidão era até agradável, uma doce amargura. Abriu a janela da sala e deixou que o vento quente marítimo lambesse seu rosto, uma delícia. Debruçou-se e ficou observando o número de banhistas aumentar gradativamente. Alguns vinham sós, outros em grupo, casais, cães com seus orgulhosos donos.
À noite, depois de passar o dia na doce nostalgia de não fazer nada, arrumou-se cuidadosamente e rumou ao seu encontro. Sentia que seria definitivo, único e último. Então escolheu seu mais singelo vestido, era azul.
Enquanto dirigia pela cidade, observava a vida noturna borbulhante e aparentemente feliz, havia de tudo, desde as pequenas crianças abandonadas até as prostitutas mais luxuosas. Sentia-se meio assim também, uma prostituta do destino, da vida. Buscava sobreviver com prazer, o que nem sempre era possível.
Avistou o grande bar iluminado, estacionou rapidamente na sua vaga de sempre. Os mesmos olhares de sempre a acompanharam até chegar ao pequeno camarim. Não estava muito disposta a maquiar-se, mas era preciso, necessitava esconder o que a face teimava em revelar. Cuidadosamente fez uma maquiagem disfarce eficiente. Trocou seu vestido por outro, vermelho, bem decotado e longo. Acendeu um cigarro, era necessário. Logo vieram chamá-la.
Sentiu que seria uma noite muito diferente. Ao entrar no pequeno palco vislumbrou vários rostos conhecidos, alguns que sempre afogavam suas mágoas todas as noites ali, ouvindo-a cantar suas tristezas e mazelas de amor. Começou com Chico em “gota d’água” e terminou com “Eu te amo”. Cantou ainda algumas de Zélia Duncam, Adriana Calcanhoto e Ana Carolina.
No primeiro intervalo sentou-se na mesa minúscula de sempre, vieram alguns noturnos pedir uma música e outra, anotou-as sem muita atenção. Pediu uma água sem gelo. Não sabia quanto tempo ficaria ali, mas a impressão que tinha era que seria uma eternidade, não tinha inspiração para voltar ao palco, não agora. Mas o dever a empurrava pra frente.
Sentiu que mãos grandes e conhecidas a tocavam no ombro. Não precisou falar nada para que ele percebesse sua aflição e desânimo. Aliás, nunca precisara dizer qualquer palavra para que ele soubesse o que se passava. Esperou que ele sentasse para beber sua água, era uma forma de ocupar o corpo.
- Como está?
- Como deveria? Feliz, imensamente feliz... – não conseguia deixar de ser dramática, era sua fraqueza.
- Sinto muito, mas é que...
- Não precisa dizer nada, como sabe bem disso. Preciso voltar ao palco.
- Só mais um instante. Eu não ficarei até o final.
- Tudo bem. Mas o que você quer?
- Nada, simplesmente ficar perto, sentir suas mãos.
Ficaram em silêncio, o que era pior.
- Eu sei que não posso pedir nada, mas gostaria muito de vê-la às vezes.
Sentiu um amargo descer a garganta, pensou que fosse chorar, mas não. Lembrou-se da noite anterior, de sua surpresa e da atrocidade do destino. Sabia que ninguém precisava dizer que aquele romance não duraria, desde o dia em que começou esperava seu fim, nem mistérios. Mas imaginar que isso ocorresse contra a vontade dos dois era uma dose excessiva de romantismo barato.
- Eu não quero vê-lo mais, então não venha mais aqui. Deixe o tempo correr, quem sabe um dia... Não seria justo conosco.
- Mas eu não quero!
- Você é jovem demais para compreender determinadas coisas.
-Não gosto quando fala assim. Sabe muito bem o quanto admiro você.
- Isso não diminui minha idade, nem tampouco aumenta a sua, o que é o melhor. Adoro este seu jeito infantil de encarar a vida.
Infantil demais para a realidade agora, pensou sorrindo. Na verdade, era o maior bem que possuía, poder olhar as coisas de cima de seu passado.
- Eu não queria ter um filho agora... mas não decido isso, não tenho este poder, infelizmente.
-Já teve este poder e deixou que escapasse entre os dedos. Sempre temos outra opção. Não se engane. E você não precisa também se culpar por nada. Tinha que ser assim.
O burburinho no bar indicou que precisava subir. Saiu mais decidida e menos triste. O segundo bloco foi mais animado, como o público gostava. Logo a pista de dança estava lotada e sentiu a música levá-la, não era mais a dona da música, mas o oposto. Ele continuava lá, sentado, com seu olhar perdido no nada, admirando-a. Sabia que estava apaixonado e isso a envaidecia, mas era assustador. Sabia o que os outros pensavam, mesmo em dias tão modernos, mas nunca pensou nisso. Sua separação era inevitável por questões que fugiam ao seu controle, não queria mexer em pensamentos que já consolidara.
Ele saiu no meio de uma bossa, A Felicidade. Viu seu corpo bonito cruzar todo o bar e sumir. Quando saiu, pela madrugada, caía uma chuva fina que não a incomodou. Sentiu-se mais leve. Foi caminhando até a praia e ficou até o sol tentar nascer, por trás das nuvens vacilantes. Com a luminosidade do dia voltou à vida real.
Ao entrar na padaria costumeira, pegou displicente o jornal e não sentiu mais nada ao ver a notícia esperada e tão íntima: “jovem grávida tenta suicídio na universidade”.

Valdira da Silva Rosa